Sobre gramática, criatividade e design (búfalos e índios também)

 

Brisa brisa Brisa brisa Brisa
Romero Tori

Talvez você tenha começado a ler esta matéria pelo seu interesse em gramática (e/ou em criatividade, e/ou em design). Talvez você seja um criador de búfalos e resolveu conferir se há relação entre a brandura dos ventos e o humor de seu gado. Talvez tenha aqui chegado por um descuido no clicar do mouse. Ou será que você me conhece e ficou preocupado com minha saúde mental? Não importa qual seja o motivo por estar aqui (espero que ainda esteja…prometo que no mínimo vai achar interessante o que vem a seguir), pois muito provavelmente não se trata de nada do que pensou.


Então, vamos às explicações, começando pelo começo. Por acaso você ficou “brisado” com o título?


Se ficou, saiba que está próximo de desvendar o mistério da sentença enigmática que encabeça este etxto. Sim, não parece, mas  “Brisa brisa Brisa brisa Brisa.” é uma construção sintática, gramaticalmente correta, que possui sentido em português. Apenas tomei a “licença poética” de omitir as aspas que deveriam envolver as três primeiras palavras:   

“Brisa brisa Brisa” brisa Brisa.


Ficou mais claro o sentido agora? Não? 


Bem, o sentido dessa sentença “brisada” é o seguinte:


O fato de que “a brisa faz com que Brisa (a pessoa chamada ‘Brisa’) fique brisada” a faz brisar.


Desenhando:

Você pode até dizer que essa sentença é maluca. Mas não pode dizer que seja sem sentido, nem incorreta! Trata-se de uma sentença gramaticalmente correta, formada por duas orações, cada uma delas com sujeito, verbo e predicado.


Achou interessante? Já tinha imaginado ser possível criar uma sentença gramaticalmente correta repetindo uma mesma palavra cinco vezes? Pois saiba que pode ficar ainda mais interessante. Se acrescentarmos à sentença uma quantidade qualquer de  “brisa Brisa”, ela continuará correta e com sentido!


Brisou?  


Neste ponto você pode estar se perguntando: 

“Mas o que búfalos, índios, criatividade e design têm a ver com essa história?”

Prossiga na leitura. Eu posso explicar tudo. Prometo.


“Buffalo buffalo Buffalo buffalo buffalo buffalo Buffalo buffalo”


A sentença acima, criada pelo professor de literatura  William J. Rapaport em 1972, é gramaticalmente correta e possui sentido em inglês.  Seu significado é o seguinte:


"Búfalos da cidade de Buffalo que (outros) búfalos de Buffalo atormentam (por sua vez também) atormentam búfalos de Buffalo" 

(veja mais detalhes neste artigo da Wikipídia)


Essa construção só foi possível porque “buffalo” possui três significados diferentes em inglês: Buffalo (cidade), buffalo (atormentar) e buffalo (animal). Além disso, a língua inglesa facilita porque permite omitir preposições e conjunções muito facilmente. Em português o desafio de encontrar uma frase com essas características é maior porque se quisermos mencionar uma imaginária “cascavel da cidade de Cascavel” não poderemos escrever “Cascavel cascavel”, como se pode fazer em inglês. No mínimo precisaríamos colocar uma preposição: “cascavel de Cascavel”.  


Eu já conhecia há tempos a frase dos búfalos de Buffalo. Achava muito interessante (adoro gramática, linguagens e lógica) mas tinha certeza de que esse seria um caso muito específico e que, na língua portuguesa, muito provavelmente não encontraríamos nada parecido com isso. Até que há alguns dias me lembrei dessa construção linguística pouco antes de dormir e resolvi pensar melhor sobre o assunto.


O método do Design

Não sou designer. Sou engenheiro. Sou também professor, na USP, da Escola Politécnica, no curso de engenharia de computação, e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, no curso de design.


Como pesquiso, ensino e trabalho com computação gráfica, interação homem-máquina e tecnologias interativas aplicadas à educação, diversos caminhos me levaram a ministrar disciplinas em cursos de Design, bem como orientar trabalhos e coordenar projetos de pesquisa e desenvolvimento nessa área, atividades essas que desempenho, com muito prazer, há quase 20 anos. A convivência com professores, pesquisadores e alunos de design, além de demandas trazidas por tais atividades, me fizeram conhecer um pouco mais do que, na média, nós engenheiros costumamos saber sobre essa importante área de ciência aplicada. Tive o privilégio de aprender a “pensar como designer” antes mesmo de surgir a “moda” do “design thinking”.


Aprendi que antes de se tentar pensar numa solução é importante entender muito bem o problema e conseguir defini-lo (a bem da verdade, aprendi isso na engenharia também). A criatividade é uma componente importante no processo, mas é preciso ter método para se chegar a boas soluções. Quanto mais alternativas de soluções forem imaginadas (nessa hora a criatividade ajuda), melhor será a solução final encontrada (método é essencial para se fazer análises comparativas e se chegar a uma boa escolha). Na engenharia usamos bastante a técnica de “levantamento de requistos”. Juntando meus conhecimentos trazidos da engenharia com os que absorvi do Design venho ajudando estudantes de design a compreender a importância, e a desenvolver habilidades, de análise de problemas e levantamento de requisitos da solução. Quando essa etapa é bem feita, as alternativas de solução começam a saltar à nossa frente quase que naturalmente.


Há uma conhecida frase atribuída a Einstein em que ele teria afirmado que se tivesse 1 hora para resolver um problema dedicaria 55 minutos pensando no problema e apenas 5 minutos pensando na solução. Como designer, Einstein foi um excelente físico. Quando o problema é “descobrir algo”, como é o caso de muitas pesquisas científicas, talvez seja por aí mesmo. Mas quando se trata de criar uma solução, como ocorre na prática de design, chegar à melhor também exige tempo, porque é necessário buscar alternativas que atendam aos requisitos levantados, analisá-las criteriosamente, o que muitas vezes envolve prototipagens e testes, até se chegar à melhor solução.  De qualquer forma, dedicar bastante tempo a entender o problema faz parte do “design thinking” e funciona para qualquer tipo de problema.


Definindo e Entendendo o Problema

Retornemos à questão da frase dos búfalos de Buffalo. Como eu já mencionei, naquela noite me veio novamente a curiosidade de saber se seria possível construir uma frase como aquela, com a repetição de palavras homônimas, que fizesse algum sentido e fosse gramaticalmente correta. Percebi que tinha um problema interessante em mãos. Decidi então entendê-lo e defini-lo melhor, dormir com tais informações na cabeça para, quem sabe, conseguir encontrar alguma solução no dia seguinte. Esse é um método que costumo usar bastante. Minha cabeça consegue processar informações com máxima eficiência ao despertar. Quando tenho um problema complicado costumo  dormir pensando nele e acordar resolvendo-o. Defini então o problema e os requisitos da solução. 


Problema: construir uma frase em português com a repetição de uma mesma palavra várias vezes


Requistos

R1: a frase deve ser gramaticalmente correta; 

R2: a frase deve ter algum sentido, ainda que absurdo; 

R3: a palavra escolhida deve ter pelo menos três significados diferentes, sendo um deles necessariamente um verbo.


Encontrando Alternativas

Após estabelecer os requisitos da solução, o desafio que eu havia estabelecido já não parecia tão impossível quanto antes. Afinal, encontrar palavras que possuam três significados bem diferentes, sendo um deles verbo, é relativamente fácil. Ainda restará o desafio de encontrar algum sentido para uma frase formada exclusivamente pela repetição da palavra encontrada. Mas, pelo método do design, precisamos primeiramente encontrar um grande número de alternativas, para então analisá-las a fim de escolher qual seria a melhor solução. Não seria produtivo me preocupar com o desafio de encontrar sentido nas repetições dos vocábulos antes de ter encontrado um bom número de palavras que atendessem aos requisitos. 


Na manhã seguinte acordei pensando em homônimos. “Cascavel” é nome de cidade, nome de animal e também pode exercer a função de adjetivo, mas não de verbo. Descartada. Se existisse o verbo “mangar” poderia pensar em algum significado para “Manga manga manga”, pensei. Sem qualquer esperança fiz uma busca e, para minha surpresa, existe sim o verbo “mangar”, significando, entre outras coisas, “debochar”. Bingo! Alternativa de solução anotada. Pensando em “coisas” e no título do livro de Bruno Munari sobre a arte de projetar (“Das Coisas Nascem Coisas”) lembrei-me que existe a gíria “coisar” e também o personagem da Marvel chamado "Coisa". Hummm… daqui pode sair alguma coisa! Anotado. Embalado pela brisa da manhã, continuei brisando e descobri que existe uma cantora chamada “Brisa”. Opa!!! Anotado.


Em busca da melhor solução

Ainda deitado, prossegui com o meu processo de “design thinking”, usando literalmente apenas o pensamento como ferramenta, em busca de resolver o desafio que havia me colocado na noite anterior. A partir das palavras selecionadas fui tentando imaginar sentidos. O Coisa deve gostar de “coisar” as coisas… Próxima! Eu tive um amigo cujo apelido era Manga, então pelo menos eu acreditaria na existência desse nome.  Será que ele debocharia de uma manga de camisa suja de suco de manga…Próxima! No final, após busca de sentidos para todas a s alternativas levantadas, selecionei apenas duas frases: “Coisa coisa coisa coisa Coisa” (deixo a você o desafio de dar um sentido a essa sequência de “coisas”; eu consegui; acho.) e “Brisa brisa Brisa brisa Brisa”, cujo sentido já expliquei lá em cima e que, obviamente, foi a solução final por mim encontrada.


Em tempo. O desafio que eu havia me colocado incluía usar apenas o pensamento para chegar a uma solução. Se você é da área de ciência de dados talvez já tenha pensado numa forma de buscar uma solução analisando um dicionário e as semânticas das palavras. Provavelmente chegará a uma frase melhor que a minha. Isso mostra como a fase de entendimento do problema e levantamento de requisitos é importante.A partir desse levantamento fica muito mais fácil automatizar o processo de busca de alternativas. 


Sobre Criatividade

Talvez você possa ter achado a minha solução criativa (ou não!). Mas criativo mesmo foi o Professor Rapaport, criador da frase “Buffalo buffalo Buffalo buffalo buffalo buffalo Buffalo buffalo”,  ao conceber um problema que ninguém nunca tinha imaginado existir! Muitas vezes, como neste caso, a criatividade que faz diferença está em imaginar um problema (e para isso não existe método). Outras vezes o problema é bastante conhecido, mas ninguém consegue pensar numa solução (e para isso o “design thinking” ajuda muito). Neste caso, encontrar alternativas (hipóteses) plausíveis de solução pode exigir criatividade. Mas essa criatividade estará a serviço de um método, devendo atender a requisitos e se submeter a processos mais sistematizados.


Eu não criei algo totalmente novo, como foi o caso do Prof Rapaport. Apenas me inspirei em suas ideias e apliquei “design thinking”  para solucionar um problema derivado do original. Costumo dizer que o designer utiliza criatividade como meio para solucionar problemas, enquanto que o artista cria novos problemas e usa o “design thinking” como meio para realizar a sua criatividade. O Prof Rapaport foi mais artista que designer. Eu, na verdade, fui mais “engenheiro” mesmo (em momento de “folga”). 


A língua indígena que “pirou” a gramática de Chomsky

Permita-me agora fazer uma pequena digressão, para falar sobre linguagens, linguagens formais e recursividade. 


Enquanto redigia este texto resolvi submetê-lo à apreciação de meu amigo e “guru”  Luciano Silva. Além de professor e pesquisador em Ciência da Computação, Luciano é profundo conhecedor de linguística. Já perdi a conta de quantas línguas ele fala, incluindo javanês (não a homônima linguagem de programação, a qual ele não fala mas escreve muito bem, como, aliás, qualquer outra linguagem de programação já inventada ou a ser criada) além de dominar vários assuntos computacionais e também “aleatórios” muito interessantes. Enviei-lhe uma mensagem pedindo que desse uma olhada caso tivesse algum tempo livre durante as festas de fim de ano (foi justamente nesse “tempo livre” que me surgiu a ideia de escrever este texto que você lê).


Exatos 50 minutos depois (foi o tempo de eu almoçar) fui gratamente surpreendido com sua resposta. Ele tinha gostado do texto! (claro que dei um desconto pela amizade, mas o tamanho da resposta e ideias novas complementares que trouxe, sem apontar nenhum deslize no texto, me deixou um pouco menos inseguro quanto à validade de publicá-lo; “no mínimo despertou interesse no Luciano”, pensei, o que não é pouco, pois sei que ele é bastante seletivo quanto a que dedicar seu tempo).  

Faço uma síntese a seguir de seus comentários e sugestões, pelas quais estou muito grato. 


“Aqui tem exemplos em outras línguas... mas, em Português, o seu é o primeiro exemplo que conheço”, comentou Luciano, para meu deleite.


Por que fiquei tão empolgado com esse feedback do Luciano?


Primeiramente, porque os exemplos na matéria cujo link ele me enviou são muito muito muito interessantes (não, não se trata de outro exemplo do tipo de construção linguística abordado neste texto, apenas uma tentativa de dar ênfase ao advérbio de intensidade; como advérbio pode modificar outro advérbio, acredito não ser gramaticalmente errada essa repetição, mas eu precisaria consultar outro guru, o Prof Pasquale para ter certeza).


“Segundamente”, como diria o famoso criador de construções linguísticas Odorico Paraguaçu, porque se Luciano não conhece outro exemplo em língua portuguesa é muito provável que eu tenha sido o primeiro a descobrir um.  Já pensou se esse exemplo virar um tópico da Wikipídia? 


Luciano sugeriu também incluir uma discussão sobre “gramáticas generativas”. Um importante autor e referência fundamental nessa área é Chomsky (alerto aqui que não se trata de parente do famoso ativista político Noam Chomsky, mas sim do próprio!!!). Usei bastante esse autor na graduação e pós-graduação, em disciplinas de linguagens formais, e também em projetos e pesquisas. O primeiro projeto de que participei, logo que me formei, foi o de criação de uma linguagem para representar conteúdos gráficos (na época “Computação Gráfica” era novidade e as linguagens de programação eram boas para tratar dados alfanuméricos mas não lidavam bem com dados gráficos).


Bem, se você não é engenheiro(a) de computação, nem cientista da computação, nem matemático, nem simpatizante, talvez seja saudável pular os próximos três parágrafos (coloquei em outra cor para facilitar) ;-).


Usando-se gramáticas generativas, Luciano Silva definiu a seguinte regra sintática para geração de infinitos exemplos a partir do exemplo básico que eu criei e que dá título a este texto:


<base> ::= Brisa brisa Brisa

<phrase>::= <base> |

                      <phrase> brisa Brisa


Essa linguagem usada para descrição generativa de sintaxes de linguagens recursivas, lembro-me muito bem (o primeiro projeto a gente nunca esquece!), se chama BNF (Backus-Naaur Form).


Prosseguindo com suas considerações sobre linguagens recursivas e gramáticas generativas, Luciano trouxe uma informação bastante interessante: 


“Essas construções são possíveis em linguagens naturais que possuem estrutura recursiva, como Português ou Inglês. Mas, existem línguas como a língua indígena Pirahã (do Brasil), que saiu fora da teoria de Chomsky por não ter estrutura recursiva. Sendo assim, esse tipo de construção, como a da “Brisa” ou a do “Buffalo”, não seria possível de ser criada nessa língua indígena”.


Tinha de ser o Brasil a contribuir para a quebra de mais um paradigma que parecia “lei universal”.


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